Pelo direito ao corpo, ao espaço público e contra a violência sexual!

Pelo direito ao corpo, ao espaço público e contra a violência sexual!
Mudar o trajeto de ida e volta para a escola, trabalho ou casa, selecionando certas ruas e linhas de ônibus. Evitar sair com determinados tipos de roupa. No ônibus, só se sentar nas cadeiras da frente. Quando em pé, em um ônibus lotado, se proteger com a bolsa ou mochila. Recusar uma oportunidade de trabalho, por se tratar do turno noturno. Deixar de tomar mais uma cerveja ou ficar só no refrigerante. Garantir que terá uma companhia para voltar de algum evento. Compartilhar a rota do Uber para ser acompanhada por outra pessoa. Pedir para avisar que chegou bem. Avisar que chegou bem.
A lista de restrições e de medidas tomadas por mulheres todos os dias no esforço de se sentirem mais seguras é infindável. E demonstra: não dispomos do pleno direito ao nosso corpo, aos nossos desejos e de transitar livremente pelo espaço público.
A luta contra a violência doméstica e pelos direitos da mulher ao próprio corpo esteve presente desde a segunda onda do movimento feminista no Brasil, na década de 1970. Esse movimento, marcado por uma ampliação e diversificação de mulheres participantes, em um contexto de crise política no país e cerceamento de liberdades, pauta a construção de novos modelos sociais, associando uma luta contra a ditadura a uma luta contra a supremacia masculina. A partir daí, são organizados diversos grupos, coletivos e jornais feministas, que dão força ao movimento e permitem sua atuação.
Assassinatos de mulheres por parceiros e ex-parceiros, comuns no país e justificados como “legítima defesa da honra”, fomentam o surgimento do movimento “Quem ama não mata”, impulsionado pelo assassinato da socialite Ângela Diniz (1976) e o argumento utilizado pela defesa de seu assassino, Doca Street. Em 1985, a criação das primeiras Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) é um dos desdobramentos da luta de enfrentamento à violência contra mulher. Apesar dos avanços que se seguiram, os números de violência contra mulher continuam alarmantes, sobretudo quando se trata da violência sexual. Apenas em 2009, a constituição que criminaliza a violência sexual foi modificada para
abranger “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Até esse momento, o texto definia o crime de estupro como aquele em que houvesse “conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, ou seja, de forma que apenas a penetração constituía o crime de estupro, sendo as demais ocorrências tipificadas em atentado ao pudor. O reflexo de uma mudança tão recente, e sem esforços proporcionais na área de políticas públicas, de forma que haja uma reeducação da sociedade brasileira, reduzindo a incidência de crimes sexuais contra as mulheres, pode ser visto no caso recente ocorrido na cidade de São Paulo, em que um homem ejaculou em uma mulher que estava sentada no coletivo. A decisão judicial foi de que não havia a caracterização de estupro, pois entendeu-se que “não houve constrangimento a vítima”, e que o acusado, que já possui histórico de diversas tentativas de estupro, necessita de tratamento psicológico e psiquiátrico.
Exatamente no dia anterior ao ocorrido, 28 de agosto, a escritora e militante feminista Clara Averbuck publicou em sua página pessoal do Facebook o relato de um abuso que sofreu na noite do dia 27 de agosto, por parte de um motorista do Uber, quando voltava para casa de uma festa. Segundo ela, o homem se aproveitou de sua posição vulnerável ao sair do carro e, fingindo tentar ajudá-la, enfiou o dedo em sua vagina. Não faltaram críticas ao comportamento de Clara, que afirmou ter bebido naquela noite e usado saia e uma “calcinha pequena”. Nos comentários de suas redes sociais questionaram se Clara havia de fato sofrido estupro ou se tinha trazido a situação a tona para chamar a atenção.
Paralelamente às reações machistas, responsabilizando Clara pelo ocorrido, inúmeras mulheres compartilharam suas experiências através das hashtags #meumotoristaabusador e #meumotoristaasseadiador. São relatos de assédios a caminho da rodoviária, de velório, de mulheres acompanhadas de crianças de colo, por amigos e conhecidos.
Assim, concluímos que nenhuma de nossas ações, enquanto mulheres, serão eficazes, pois se direcionam para o constrangimento e a repressão de nossos
próprios comportamentos. Além disso, o discurso de responsabilização das vítimas não se restringe apenas ao debate social, fazendo com que os magistrados no julgamento dos casos, como o ocorrido em São Paulo, analisem não somente o fato em si, mas também o comportamento pessoal dos envolvidos, reproduzindo preconceitos que reforçam as desigualdades de gênero e naturalizam ou até mesmo justificam a violência sexual. Para além da discussão jurídica se o crime ocorrido deveria ser enquadrado ou não na atual definição de estupro, o fato é que houve violência sexual contra a vítima no transporte público e que a liberação de seu agressor, rápida e sem maiores consequências, resultou em seu retorno apenas alguns dias depois pelo mesmo tipo de ato.
Como a história nos exemplifica a partir das repercussões positivas que movimentos sociais como o “Quem ama não mata” alcançaram, é esperançosa toda repercussão que casos como esse tem gerado. Isso mostra que as mulheres brasileiras não estão dispostas a serem encaradas como culpadas das violências sofridas, obrigadas a assistir seus agressores saírem livres de processos de julgamento e sem o sofrimento de penas.
Wendy Xavier P. Fernandes - graduanda do curso de História da UFES
Luciana Silveira – doutoranda do PPGHIS/UFES
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